Artigo – A segurança jurídica diante das idas e vindas do marco temporal e do STF – Por Camila Martins Vieira Martins

As discussões sobre a pertinência do projeto de lei que fixa marco temporal para a posse de terras indígenas jogam luzes sobre o tratamento conferido pelo Supremo Tribunal Federal a causas que versam sobre políticas públicas, sob o prisma da segurança jurídica. E sobre as consequências decorrentes da forma de atuação da Corte.

O tema não é novo no palco do Judiciário, sendo objeto do famoso caso conhecido como Raposa Serra do Sol [1], que teve seu julgamento iniciado pelo STF em 2008 e encerrado dez anos depois, em 2018. Na referida ação popular de competência originária da Suprema Corte, buscava-se a declaração de nulidade da Portaria nº 534/2005, do ministro da Justiça, que define os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e declara a posse dos grupos indígenas que habitam a reserva. Apesar do pedido restrito, a ação culminou com densa decisão que elencou dezenove condicionantes para o usufruto de terras pelos indígenas, além de fixar a tese do marco temporal.

A despeito de tratar de terra indígena específica, o teor abstrato da decisão acabou por criar (ou clarear mediante interpretação da Constituição) o estatuto jurídico do usufruto de terras indígenas. E isto foi reconhecido pela própria corte, que ao decidir os embargos de declaração opostos em face do julgado, consignou que apesar de a decisão proferida em ação popular não possuir caráter vinculante, “ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta corte do país, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite a superação de suas razões” [2].

O respeito ao quanto decidido pelo STF movimentou a máquina pública, no sentido de garantir a concretização do julgado. Imbuída deste mister, a União instigou seu órgão de consultoria a se manifestar, havendo a Advocacia-Geral da União emitido o Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, que foi aprovado pelo Parecer GMF-05/2017 [3], e passou a servir como suporte normativo jurídico para todas as demarcações realizadas pelo Poder Executivo. Em suma, o normativo internalizou na Administração Pública a decisão exarada pelo STF no caso Raposa Serra do Sol.

Diante da expressa interpretação do artigo 231 da CF/88 pela Suprema Corte, em tese, a controvérsia sobre o marco temporal teria sido definitivamente solvida.

Ocorre que a ausência de efeito vinculante da decisão proferida no caso Raposa do Sol levou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região a se pronunciar em sentido oposto em causa envolvendo posse de terras indígenas, e o tema retornou ao STF através do Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC, interposto pela Funai. A repercussão geral foi reconhecida pela Corte, com a seguinte assentada: Tema 1.031 —Definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional.

A Defensoria Pública da União e comunidades indígenas, então, requereram em sede liminar a suspensão dos efeitos do Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU, especificamente quanto ao marco temporal e vedação à ampliação de terra demarcada, que em seu entendimento teria extrapolado seu caráter normativo, inserindo pressupostos para a demarcação de terras inexistentes na legislação. A liminar foi deferida pelo ministro Edson Fachin, estando suspensos os efeitos do referido Parecer até o julgamento do recurso, atualmente sobrestado por pedido de vista do ministro André Mendonça.

Com a (re)judicialização do marco temporal, e suspensão do ato normativo que serve de instrumento jurídico para que a Administração Pública possa efetuar a demarcação de terras indígenas, a execução da política pública indigenista sofre prejuízos, no mínimo, quanto à segurança jurídica dos atos a serem praticados.

A tornar mais complexa a solução do tema, recentemente voltou a tramitar no Congresso o PL nº 490/2007, que pretende regulamentar o artigo 231 da Constituição, dispondo sobre reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas. O projeto aprovado por ampla maioria na Câmara dos Deputados no último dia 30 de maio contempla o marco temporal, exigindo a existência de posse indígena na data da promulgação da Constituição. O texto foi encaminhado ao Senado, onde foi autuado pelo nº 2.903/2023.

A solução do tema, por tanto tempo adormecida, agora caminha a largos passos no STF e no Congresso.

No STF o julgamento possui três votos divergentes: um contra o marco temporal; um a favor do marco temporal; e um que utiliza o marco temporal como fator de criação de direito à indenização integral para ocupantes de boa-fé. O placar ilustra a realidade de absoluta cisão que permeia o tema na atualidade, apesar de já haver decisão proferida pela Suprema Corte, analisando detidamente e julgando o assunto. E isso é bem intrigante se pensado sob o enfoque da segurança jurídica.

Ora, se o STF já se pronunciou — ainda que em decisão desprovida de força vinculante — sobre o marco temporal, revisitar o tema só poderia significar dar efeitos amplos ao quanto decidido. Não é isso, contudo, que está a ocorrer, porquanto a Corte optou por reabrir toda a discussão sobre a posse de terras pelos indígenas.

Mais que um conceito abstrato insculpido de forma genérica no Preâmbulo da Constituição, a segurança jurídica constitui-se em princípio fundamental da ordem jurídica, expressão do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, cuidou o Constituinte de contemplar de forma expressa diversas manifestações do princípio, como legalidade, proteção à coisa julgada e respeito ao devido processo legal. Isso porque “uma certa estabilidade das relações jurídicas, constitui um valor fundamental de todo e qualquer Estado que tenha pretensão de merecer o título de Estado de Direito” [4].

Dentro do processo judicial, a segurança jurídica advém da estrita observância ao devido processo legal, porquanto apenas o apego aos direitos fundamentais que regem o processo pode proteger os litigantes e os terceiros do exercício arbitrário do poder estatal, e garantir uma justiça substancialmente equânime. Externamente ao processo, mas orbitando a seu redor, estão as normas jurídicas de direito material, que serão pinçadas pelo julgador para solução do conflito específico.

Evidente que pode e deve haver interpretação conjunta do regramento jurídico vigente. Isso, no entanto, não significa que é dado ao julgador desconsiderar parcialmente texto da norma, ou alterar sua interpretação conforme lhe parecer mais conveniente no espaço e no tempo.

Não importa quão justa possa parecer uma decisão proferida pelo Poder Judiciário, ela apenas vai ser legítima dentro de um Estado democrático de Direito se tiver como ensejo e finalidade a manutenção (ou restabelecimento) da segurança jurídica para as relações envolvidas.

No caso do marco temporal para reconhecimento de direitos sobre terras potencialmente indígenas, a Constituição de 1988 definiu como terras indígenas as “tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (artigo 231, §1º). O verbo foi usado no presente, na época da promulgação da Carta. E não é válido o argumento de que o Constituinte desconhecia os conflitos que pairam sobre tais áreas, visto que estes remontam à época do Brasil Império.

A previsão do marco temporal pela Constituição é evidente, tanto que tal ponto foi reconhecido de forma unânime pelo Pleno do STF quando do julgamento do citado caso Raposa Serra do Sol. Na ocasião, os ministros fizeram constar no item 11 da Ementa da decisão que “A Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene;” [5].

Como é possível que uma afirmação tão enfática e baseada em elementos concretos possa ser revisitada sem lesão à segurança jurídica? Não nos parece que esse tão importante princípio saia incólume deste processo.

Para além, o fato de o tema estar sendo tratado de forma ativa pelo Congresso por ocasião da inclusão em pauta de julgamento — e proferimento de voto — pela Corte, reforça os danos à estabilidade das relações envolvidas, posto que, em tese, cabe ao Legislativo regulamentar o texto constitucional. E os debates pertinentes estão ocorrendo nas casas legislativas, inclusive com forte intervenção dos grupos interessados e cobertura da mídia.

Independentemente do mérito da discussão e da solução final a ser alcançada, merece ser observado com atenção esse peculiar método de solução de conflitos em uso pelo STF, uma vez que, ao que parece, não confere a devida ênfase ao princípio da segurança, sem o qual não se pode alcançar a paz social em um Estado democrático de Direito.

[1] Nome pelo qual é conhecida a Petição nº 3388/RR, ajuizada perante o STF por autor popular, em face da União, visando a declaração de nulidade da Portaria nº 534/2005, do ministro da Justiça, que define os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e declara a posse dos grupos indígenas que habitam a Reserva.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Petição 3388/RR. Embargos de declaração. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. […] A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões. Autor: Augusto Affonso Botelho Neto. Réu: União. Relator: ministro Roberto Barroso, 23 de outubro de 2013. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5214423. Acesso em: 11 abr. 2023.

[3] BRASIL. Presidência da República (Casa Civil). Parecer GMF-05, de 19 de julho de 2017. Adota, para os fins do artigo 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, o anexo PARECER N. 0001/2017/GAB/CGU/AGU. Brasília: 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AGU/PRC-GMF-05-2017.htm. Acesso em: 12 abr. 2023.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais

 e proibição de retrocesso no direito constitucional brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, 14, nº 57, outubro/dezembro 2006, p. 1.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Petição 3388/RR. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Inexistência de vícios no processo administrativo-demarcatório. […] Revelação do regime constitucional de demarcação das terras indígenas. […] Salvaguardas institucionais ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Autor: Augusto Affonso Botelho Neto. Réu: União. Relator: ministro Carlos Britto, 19 de março de 2009. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133. Acesso em: 11 abr. 2023.

Camila Martins Vieira Martins é procuradora federal em atuação no Núcleo de Atuação Prioritária em Processos Finalísticos da Procuradoria Regional Federal da 4ª Região e pós-graduada em Advocacia Pública pela Escola da Advocacia-Geral da União.

Fonte: ConJur


A Associação dos Notários e Registradores do Estado de Mato Grosso do Sul, também denominada ANOREG MS, é uma sociedade civil, sem fins econômicos, constituída por prazo indeterminado, tendo sede e foro no Município de Campo Grande/MS.

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